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Quimera

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Para facilitar o estudo psicológico proposto, achamos útil introduzir uma noção auxiliar, cuja origem remonta à mitologia grega, onde ela aparece sob a imagem de um monstro fabuloso: a Quimera.

Na mitologia, ela aparece com uma cabeça de leão, o corpo de uma cabra, a cauda de um dragão, e vomitando turbilhões de chamas e de fogo. Dizia-se que a Quimera tinha por pai Tifon, príncipe do mal e da esterilidade e por mãe Equidna, meio-mulher, meio-serpente, que havia gerado Crisaor, nascido do sangue da Medusa. Da mitologia grega, a imagem da Quimera passou ao cristianismo. É encontrada de novo como motivo ornamental em certas catedrais góticas. As gárgulas da Notre-Dame de Paris, por exemplo, foram esculpidas em forma de quimera com cabeça de leão estilizada, não tendo, entretanto, senão a parte de cima do corpo.

Em certas catedrais ortodoxas, as quimeras formam o ornamento da cadeira episcopal. Apresentadas em sua totalidade, esculpidas em madeira, agachadas a cada lado da cadeira, elas lhe servem de suporte.

O significado esotérico primitivo desse monstro foi perdido, mas seu sentido simbólico é conhecido e seu nome passou à linguagem corrente: entende-se por quimera uma idéia falsa, uma imaginação vã. Uma mente quimérica alimenta-se de ilusões e um projeto quimérico desfaz-se ao teste dos fatos, sendo sem fundamento ou irrealizável.

Tentemos recuperar o significado atribuído à Quimera e dissimulado na mitologia pelas tradições iniciáticas. Sabemos que todos os seres na Natureza se dividem em três categorias, de acordo com o número de centros psíquicos que lhes é próprio. A primeira categoria compõe-se de seres que não têm senão um centro psíquico: evidentemente, o centro motor. Os seres pertencentes à segunda categoria têm dois centros: os centros motor e emocional. Finalmente, os seres que possuem três centros — somente os humanos — têm o centro motor, o centro emocional e o centro intelectual.

A fabulosa Quimera é um animal de tipo superior; classifica-se sem dúvida, com sua cabeça de leão e seu corpo de cabra, na segunda categoria de seres que possuem dois centros psíquicos. Por tal motivo, como ser vivente, ela deveria possuir o centro motor e o centro emocional; ora, ela possui realmente dois centros psíquicos, mas estes são os centros motor e intelectual. Ela não pode, pois, ter senão uma existência irreal, quimérica, no sentido atual do termo, pois não existem na Natureza seres outros bicerebrados que aqueles providos de um centro motor e um centro emocional.

Qual foi então a razão que fez com que tal monstro fosse introduzido na mitologia grega da alta Antigüidade, que remonta às origens da Iniciação?

O simbolismo da Quimera deve ser estudado sob seus dois aspectos, que nos ajudarão a compreender melhor a condição do homem exterior dominado tanto pelo Eu provisório da personalidade incompleta, quanto pelo meio no qual passa sua vida, isto é, nossa vida.

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Retomemos o esquema elementar dos três centros psíquicos em seu funcionamento normal, duplo, positivo e negativo:

Já vimos que, destes três centros, o centro motor é o mais desenvolvido e o melhor organizado. Quando o homem nasce, este centro já se encontra em um estado de funcionamento muito complexo. O espermatozóide possui um centro motor cujo papel essencial se exprime pela função motora, enquanto que a função instintiva é assegurada pelo óvulo e, a partir do momento da concepção, pela parte instintiva do centro motor da mãe. O centro motor preside à constituição do corpo fetal, rege seu crescimento, depois seu desenvolvimento até o fim da gravidez. Após o nascimento da criança, o centro motor individualizado assegura o crescimento do corpo humano e, com o auxílio do centro intelectual, ou às vezes guiado por este, seu desenvolvimento, que compreende um aprendizado físico e psicológico. Isto significa que no homem, desde o dia de seu nascimento, o centro motor trabalha plenamente, tanto em sua parte positiva, instintiva, quanto em sua parte negativa, motora. Ele também é portador de todas as predisposições que o homem tem pelo sangue, por sua hereditariedade tanto corporal quanto psíquica, como de suas próprias experiências anteriores.

Se, no caso do centro motor, a educação e a instrução são necessárias em uma certa medida para aperfeiçoar seu desenvolvimento, no caso do centro intelectual, ao contrário, tudo ainda está por fazer. Ele está virgem ao nascer: é uma tábua rasa. Precisa aprender tudo, e sua formação ainda está toda por fazer *.

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Todo o sistema moderno de instrução pública — primária, secundária e superior — é orientado, por assim dizer, quase exclusivamente para o crescimento e desenvolvimento do centro intelectual. Nossa cultura é uma cultura intelectual por excelência; o título de Intelectual significa que o homem de nossos dias, qualquer que seja a classe social a que pertence, está apto a participar ativamente na evolução da cultura contemporânea.

Ora, ao lado desse desenvolvimento avançado dos centros motor e intelectual. o centro emocional no homem culto contemporâneo faz a figura do parente pobre. Com efeito, a sociedade humana — pelo intermédio dos poderes públicos — não se preocupa absolutamente com seu desenvolvimento. A instrução religiosa que, por sinal, não é mais obrigatória nos países civilizados, sofre a influência do ambiente; está, por assim dizer, "intelectualizada". Não é, pois, de admirar que com a idade, abandonado à sua sorte, o centro emocional do homem degenere cada vez mais. Pois a lei é formal — o que não cresce nem se desenvolve cai, por isso, em degeneração.

* O mesmo acontece, no recém-nascido, com o centro emocional inferior. É uma tábua rasa e isso lhe permite captar certas energias do centro emotivo superior, pois ele ainda é puro. Mas sua formação ainda está toda por fazer, como a do centro intelectual inferior.

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Boris Mouravieff, «Gnôsis», t II, p. 193-196, A La Baconnière.

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